domingo, 31 de março de 2013

Abraão e Isaque.

Deus mandou Abraão imolar seu único filho, Isaac, e oferecê-lo em holocausto a Ele sobre uma das montanhas de Moriá. E tomou Abraão a lenha do holocausto e um cutelo e levou seu filho ao lugar que Deus lhe dissera. E edificou Abraão ali um altar e amarrou Isaac e deitou-o em cima da lenha. E estendeu Abraão a sua mão com o cutelo para imolar o seu único filho. Mas um anjo do Senhor lhe bradou desde os céus: “Abraão, Abraão, não estendas a tua mão sobre Isaac e não lhe faças mal. Agora sei que temes a Deus, pois não lhe negaste teu único filho em holocausto”. E Abraão levantou os olhos e viu um cordeiro que Deus provera para oferecer em holocausto em lugar do seu filho, e assim fez. E o anjo do Senhor bradou que a semente de Abraão se multiplicaria como as estrelas do céu, e subiria à porta dos seus inimigos, e abençoaria todas as nações da Terra, porque Abraão obedecera à voz de Deus.
Muitos a nos depois:
- Eu ainda sonho com aquele dia e acordo tremendo.

- Você era um menino…


- Vejo o cutelo na sua mão, vejo o seu rosto contorcido pela dor, vejo os seus olhos cheios de água…


- Você era um menino…


- Lembro de tudo. Lembro dos trovões.


- Era a voz do anjo me falando dos céus.


- Não ouvi a voz do anjo. Ouvi os trovões. Só você ouviu a voz do anjo.


- Meu filho…


- Eu sei. Faz muito tempo. É melhor esquecer. Mas não consigo esquecer. Sonho com aquele dia todas as noites e acordo tremendo.


- Você era um menino…


- Me lembro das nuvens escuras. De uma revoada de pássaros negros. Pássaros atónitos, chocando-se no ar. O céu parecendo recuar com o horror da cena: um pai imolando um filho!


- Um sacrifício. Um ritual necessário de sangue. A cerimónia inaugural da nossa tribo, com os favores do céu.


- Um horror.


- Uma história muito maior do qu e a nossa. Muito maior do que a de um filho imolado. Hoje sou o pai de nações, o patriarca do mundo, porque obedeci ao Senhor e minha semente foi abençoada.


- Você ficou com o poder, eu fiquei com os pesadelos.


- Nossa tribo foi abençoada. Da minha semente nasceu a nossa glória.


- Você ficou com a glória, eu fiquei com as marcas das cordas.


- Você viu o meu rosto contorcido de dor, filho. Viu os meus olhos cheios de água. Viu que eu estava sofrendo por ter que matá-lo.


-O fio do cutelo encostou na minha garganta.


- Mas eu não o matei!


- Porque Deus não deixou. Porque Deus mudou de ideia.


- Meu filho…


- Eu sei. Faz muito tempo. É melhor esquecer. Vou conseguir sobreviver às minhas memórias e aos meus pesadelos. Como vocês sobreviveu ao que sabe.


- O que é que eu sei?


- Que deve tudo o que tem, seu poder e sua glória, a um Deus volúvel. A um Deus incerto do que faz. A um Deus que volta atrás. A um Deus inconfiável.


- Ele estava me testando.


- Então é pior. Um Deus frívolo e cruel.


- Você era apenas um menino…


- Me lembro das nuvens escuras e dos pássaros atónitos. E do céu recuando diante daquela abominação: um pai matando um filho. E me lembro dos trovões.


- Era o anjo do Senhor falando comigo.


- Eram trovões.


- Obedeci à voz dos céus porque temo a Deus.


- Mais razão para temê-lo tenho eu, pai, que senti o fio do cutelo na garganta.


- Na origem de todos os povos há uma cerimónia de sangue.


- Então na origem de todos os povos há uma abominação.


- Esta conversa se repete, filho. Por quanto tempo ainda a teremos?


- Por todos os tempos, pai.


Luis Fernando Veríssimo

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